quarta-feira, 22 de julho de 2015

Centro Histórico do Porto – Preservar para quê?



Há dias perguntava a uns turistas franceses o que tinham achado do Porto. De entre todos os elogios e considerações ficou-me esta observação: “Impressiona porque se vê que a guerra não passou por aqui”. Eram pessoas oriundas de um lugar que havia sido completamente arrasado durante a 2ª Guerra Mundial. Arrasado e reconstruido. E as pessoas lamentavam as perdas a todos os níveis mas, neste caso, patrimoniais e históricas.

É certo que as cidades se transformam ao longo da história mas também é certo que a classificação do Porto como Património Cultural da Humanidade pela Unesco, em 1996, se deve ao grau de preservação da sua identidade arquitetónica e urbanística e à sua autenticidade... E, convenhamos, a classificação do património faz-se com o intuito de preservar.

No momento da sua classificação o Porto era uma cidade preservada. Preservada mas decadente. Uma cidade de casas abandonadas, uma cidade com um enorme potencial, que urgia proteger e requalificar, mau-grado todas as reabilitações levadas a cabo desde os anos 70.

Ainda hoje isto é verdade mas estamos em tempos de mudança e a mudança neste momento faz-se a grande velocidade. À semelhança do que parece ter acontecido no século XIX, em que grande parte dos edifícios foram renovados, hoje o Porto está em obras.

O Porto está em obras por várias razões. A sua classificação impulsionou o investimento na reabilitação; a legislação sobre arrendamento alterou-se fazendo com seja, novamente, rentável reabilitar; as pessoas querem voltar a viver na cidade. Sobretudo, a cidade encheu-se de milhares de turistas, vindos de todos os cantos do mundo para conhecer esta cidade tão bonita, tão singular, tão preservada, tão cheia de História e de histórias, tão autêntica, tão cheia de pormenores nas suas fachadas, tão cheias de becos, ruelas e escadas disfuncionais mas belas...

E nós, portugueses e portueneses, que não somos “morcões”, queremos aproveitar esta oportunidade e beneficiar das receitas que estes milhares de turistas trazem à cidade e ao país... E para o fazer abrimos restaurantes, museus, lojas de artesanato, serviços de aluguer de bicicletas, autocarros turísticos, agências de viagens, hotéis e alojamentos e tudo o que nos lembre, a nós, gente empreendedora que, abandonada pela crise, se desunha para ganhar o pão.

Está tudo certo. Mas não está. Porque nesta febre de reabilitação corremos o risco de desvirtuar o carácter da cidade e destruir aquilo que nos fez merecer a classificação e que nos traz os milhares de estrangeiros todos os dias.

Paulatinamente, edifício a edifício, substituímos portas maciças e nas portas as ferragens e os batentes, substituímos caixilharias de janelas, cheias de detalhe de marceneiros de outros tempos por caixilharias mais pobres, por vezes simplificadas, por vezes fracas imitações, por vezes vidros lisos... E, por vezes, não. Por vezes, há pessoas que percebem a importância de manter o original. E optam por soluções menos invasivas, pela preservação de soluções estéticas, por conservar e restaurar os materiais originais ou substituir por réplicas fiéis. Mas, por vezes poucas...

Por vezes substituem-se os azulejos antigos por azulejos novos, quando era possível restaurar e manter os antigos, quando as entidades de tutela “mandam” que se mantenha a fachada. Quase sempre destroem-se os interiores: as escadas helicoidais em madeira iluminadas pelas características clarabóias, os soalhos, os tetos em estuque, os rodapés altos, as ombreiras das portas, as portas interiores encimadas por bandeiras, as janelas interiores que da pouca luz fazem muita. Soluções iluminadas de quem só tinha duas estreitas fachadas e uma clarabóia e com isso conseguia uma casa cheia de luz. Soluções de arquitetos de outros tempos, arquitetos com outro tempo. Um tempo em que tudo se fazia mais devagar, um tempo em que se construia para viver. Um tempo diferente do nosso, em que se destrói para sobreviver...

Ou talvez não. Talvez se destrua por ganancia, por ignorância, por desconhecer que restaurar pode, para além de tudo, ser mais barato do que reconstruir (é urgente desfazer o mito). Por desconhecer ou não querer saber que esse turista que procura o autêntico, o detalhe, a história e as história, um dia poderá não voltar mais. Poderá não voltar por desilusão, por já não ver na cidade o património classificado. Ou porque os habituais destinos turísticos – hoje postos de lado pelas guerras e pela ameaça terrorista – voltaram a estar em paz. Ou porque o petróleo se esgotou e se acabaram as viagens “low cost”.

Em todos os casos o que estamos a fazer é um erro crasso. É um erro na perspetiva da rentabilização económica por via do turismo. É um erro porque nos arriscamos a perder a classificação. É um erro porque reabilitamos para turismo, optando por soluções que condicionam o uso dos espaços para esse fim, invalidando uma fácil reconversão para fins habitacionais (vislumbro, nos seus futuros corredores desertos, um triciclo de criança fazendo um circuito solitário e aterrorizante, qual Shining...). É um erro porque sim, porque recebemos uma cidade do passado que temos obrigação de transportar para o futuro em melhores condições. Não é nosso o património. Por isso é considerado património, por isso é da humanidade, por isso é mundial. E nós não somos a humanidade, pois a nossa passagem é breve. Nós não temos uma perspetiva “mundial” quando apenas cuidados de interesses individuais e a curto prazo. O património deixará de o ser se o descaracterizarmos. Por isso, acima de tudo, não temos legitimidade para o destruir. É uma questão de princípio.

Preservar o Centro Histórico do Porto para quê? Para preservar a história, a autenticidade e a beleza da nossa cidade. Para reabilitarmos uma cidade que se quer habitada e que se quer visitada. Porque as pessoas que aqui vivem têm direito a não emigrar, a criar o seu emprego, a beneficiar da conjuntura turística favorável. Preservar esta cidade é desenvolvê-la de forma sustentada, para que no futuro, independentemente das conjunturas, ela possa ser uma cidade com vida, mas vida que preserve a alma.

Ela pode e deve continuar a ser um grande destino turístico, o turismo é bem vindo numa cidade que carece de sustento, o sustento outrora dado pela indústria e pelo comércio.

Ela pode e deve ser um lugar habitado, habitado pelas velhas gentes do Porto e pelas novas. Dessa mistura nascerá, sem dúvida, uma cidade mais rica e diversa.

O que ela não precisa é de elefantes brancos, hotéis gigantescos cujas reabilitações destroem completamente os seus interiores e descaracterizam fachadas, ultrapassando qualquer norma ou diretriz das entidades que tutelam o património. São modelos de edifícios cujas dimensão e exigências funcionais não se compatibilizam com a preservação de antigos edifícios habitacionais. Façam-se, portanto, fora do Centro Histórico do Porto. Ou não se façam de todo! Ou, excecionalmente, façam-se dentro de edifícios cuja função se perdeu e que não tenham outra solução adequada, como antigos armazéns, edifícios industriais (e mesmo assim há que ver com calma, caso a caso. Ponderar...).

Enquanto as entidades de tutela se permitem permitir este desastre, alguns particulares honram a cidade e património, optando pelo restauro. Outros sucumbem ao lobby da construção civil e das soluções aparentemente fáceis.

Falta debater amplamente este tema e falta apoiar quem quer reabilitar, como outrora se fez em Guimarães, cidade com um trabalho exemplar, a este nível. Falta ter coragem de dizer “não” aos grandes grupos económicos que apenas visam o lucro imediato. Infelizmente não é a eles – com dinheiro farto mas estreiteza de vistas – que compete defender o património e a cidade. Defender o Porto compete às entidades que tutelam o património e a construção, que deviam ser mais normativas e restritivas e menos tolerantes com os atropelos constantes às suas próprias diretrizes.

E compete-nos a nós, cidadãos que amamos esta cidade e que a queremos habitada, limpa, reabilitada mas autêntica. Que queremos turismo mas de turistas que voltem e tornem a voltar.


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