sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Sara, tu foste feita para este país mas este país não foi feito para ti

Sara, tu foste feita para este país mas este país não foi feito para ti.
Trazes as rochas da tua terra contigo desde criança e desde criança te debruças, observas, interrogas. Será mesmo verdade que existe uma grade ouro no fundo do poço do castelo? Será mesmo verdade que dentro do branco quartzo existe ouro? Dentro do quartzo que, pequenina, tentavas carregar para casa, para saber, para descobrir... E que o teu pai - grande pai - já não se lembra mas te ajudou a transportar com o amor à tua curiosidade que crescia contigo.
PAIXÃO, Sara, é a palavra que usas e é a palavra que te define. Agora és crescida e dobras uma folha de papel para nos explicar como Valongo se elevou acima do nível do mar. Já não acreditas em grades de ouro mas guardas o encanto do conhecimento. Agora olhas para as pedras que recolheste e etiquetaste e sabes explicar a idade delas, a sua formação e composição.
E a força de mulher é a mesma que outrora usaste, em menina, para quebrar o quartzo à procura do ouro.
PAIXÃO é a palavra que usas e paixão é a palavra que te define. Corres por montes e vales da tua terra e continuas a parar para observar e recolher, como outrora. Chegas a casa e etiquetas. Levas crianças contigo à procura de fósseis e acontece de elas encontrarem trilobites completas que tu adoravas ter mas que entendes pertencerem à menina que a encontrou. A ti não te pagam para levares crianças às montanhas, para as ensinar a olhar o mundo de longe e de perto. A amar, conhecer e questionar.
PAIXÃO é a palvra que usas e paixão é a palavra que te define. Os meninos da tua terra deixam pedras que os teus pais encontram junto ao portão. O teu trabalho nada tem a ver com a tua paixão. Os teus pais sabem o significado dessas pedras à porta de casa. Pedras vulgares, pedras sem interesse mas nas quais está escrita a palavra "porquê", que tu lhes ensinaste.
Sara, ouço o lamento dos teus pais e de todos os pais deste país que sofrem mais do que os filhos porque toda a vida trabalharam para que os filhos pudessem estudar aquilo que os fascinava. Os teus pais foram enganados, Sara, porque este país deitou fora os lugares que existiam para pessoas como tu. E substituiu-os por cadeirões de reis imbecis, incapazes de algum dia se debruçarem sobre uma pedra ou uma criança. O que vamos fazer a este país onde a nossa paixão não tem lugar. Pergunto-me quantas Saras existem no país mais triste? Pessoas ávidas de conhecimento, cheias de curiosidade e amor, capazes de tirar o dia de folga para saltitar por entre arbustos molhados para nos mostrar as casas redondas que desde pequena conhece e explora, que voluntariamente foi limpando amiúde para que as ervas não a encobrissem.... Quem não percebe que são estas as pessoas que deviam estar sentados nos cadeirões deste país... A deixar que a terra dos sonhos fosse conduzida pelo conhecimento, pelo amor, pelo esforço e pelo trabalho, pela persistência e pela tenacidade...? Sara, em nome do nosso país, peço-te desculpa, envergonhada, por ele não te ver, não te reconhecer, não te recolher, não te amar, não te aproveitar. E gostaria que nunca abandonasses essa paixão que te move pois tenho a certeza que a tua, a minha e a de todas as Saras deste país, um dia triunfarão. Emergirão como Valongo neste mar de mediocridade. E os fosseis sobre as quais se abaterão, esses não serão dignos de estudo.

Foi um enorme prazer conhecer-te!

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Germinal


Na leitura de Germinal de Émile Zola há mil ideias que me ocorrem. Difícil é organizá-las num texto que faça justiça a esta obra que transcende o tempo em que foi criada. Foi criada nos alvores do capitalismo, filho primogénito do liberalismo que, por sua vez, constituiu um reação ao absolutismo que, por sua vez constituiu uma reação ao feudalismo. Assim se foi desenvolvendo a história nesta espiral de tese, antítese, síntese cujo processo Marx tão bem descreveu esperando, contudo, um fim da história com todos os seres humanos em igualdade. Não sabemos se Marx se enganou porque o fim da História não está à vista mas acredito que estamos num momento de antítese cuja esperada síntese não conseguimos vislumbrar.
Várias questões me perturbam com a leitura deste livro. Retrata a luta desumana de centenas ou milhares de mineiros que, no final do século XIX, algures em França, tentavam resistir às medidas que os administradores das companhias mineiras tentavam tomar para diminuir o prejuízo provocado por um momento de crise no sector. É uma lei do capitalismo: quando tudo corre bem os lucros revertem a favor dos investidores e os trabalhadores conquistam, a custo, parcos direitos, tirados a ferros, à custa de greves, atentados, mortes… Assim que os ventos mudam, os prejuízos são imputados aos trabalhadores e subtraídos diretamente aos seus salários e direitos anteriormente conquistados que passam, nestas alturas de crise, a designar-se “privilégios” ou “regalias”. Qualquer semelhança com os dias de hoje não é pura ficção!
No passado tal como hoje, os mineiros desconhecem quem são os donos das minas. É uma gente cujos rostos não conhecem, são os acionistas que vivem luxuosamente sobre os lucros das minas e que, em momentos de crise, não podem encomendar, tanto quanto antes, os últimos modelos de Paris para as suas filhas. Parecem desconhecer que a miséria e a fome dos mineiros está diretamente relacionada com o luxo em que vivem. Eles apenas investiram ou herdaram ações… Que mal pode haver nisso? E como são pessoas de religião e de fé incutem nos seus filhos os valores de caridade e de misericórdia, enternecendo-se com a sua capacidade de despender algum do seu tempo a ajudar os pobres. Qualquer semelhança com os dias de hoje não é pura ficção! Qual é o magnata que não se enternece a ajudar uns meninos africanos a ser vacinados, a contribuir para a luta contra a fome, a ajudar instituições de caridade?... Estão a tentar lavar-se dos seus pecados ou nem sequer percebem que há uma relação causa-efeito entre o dinheiro que lhes sobra e o dinheiro que falta aos esfomeados?
Este retrato pintado pelo Germinal é o retrato de um povo que, cem anos antes, tinha acabado com o absolutismo e rebentado com uma revolução que gritava “Liberdade, igualdade, fraternidade!” O fruto dessa revolução não foi a democracia foi o liberalismo: uma classe oriunda do povo ansiava, não por direitos iguais para todos, mas em privilégios iguais para si. E assim floresce uma nova burguesia, alicerçada sobre o valor do mérito. Contestava os direitos adquiridos à nascença e reclamava que fosse possível ascender pelo trabalho e pelo mérito. No fundo reclamava apenas meios diferentes para conseguir os mesmos fins: o estatuto da defunta nobreza, o domínio de uns homens pelos outros. Depressa cuspiram no prato onde comeram. Depressa se tornaram tão insensíveis como a Antonieta. Porque reclamam os mineiros?! Afinal a Companhia não lhes dá casa e carvão de graça, acaso não tinham direito a médico e pensão de invalidez? Se o dinheiro não lhes chegava certamente é porque o gastavam na tasca… Nunca lhes ocorre que, com apenas um pequeno sentido de justiça, uma pequena distribuição dos prejuízos diminuindo ao seu lucro, talvez até os mineiros já se contentassem…
Da mesma forma hoje o capitalismo trabalha no seu próprio suicídio, quando não quer ver que depende do consumo e do emprego para se alimentar… As injustiças são cada vez mais intoleráveis. Os direitos conquistados durante décadas são diariamente roubados. E sobre a miséria, deitam a culpa sobre as pessoas. Que querem elas? Não percebem que temos de pagar uma dívida que contraímos [sem atender às reais necessidades do país]? Que quisemos aproveitar os financiamentos para grandes obras públicas [a maioria das quais perfeitamente supérfluas, mal geridas, mal planeadas e nas quais também tínhamos de pagar uma percentagem do investimento e que é, essa sim, uma das razões do nosso endividamento]?
Quem os mandou viver acima das suas possibilidades senão o capitalismo que lhes enfiava cartas no correio e lhes enchia os telemóveis de mensagens aliciantes para se endividarem para comprarem a casa, o carro e a mobília, tudo de uma assentada? Tudo novo! Nada de restaurar, de conservar, de reabilitar? Nós queremos tudo novo!
Quem pensou que investir na educação, na prevenção, na saúde, no planeamento do território, na preservação das nossas pequenas indústrias, na reconversão da nossa agricultura de subsistência numa agricultura inteligente, biológica, de pequenas propriedades mas de qualidade, poderiam ser alternativas de desenvolvimento mais sustentáveis, à medida do nosso país, que agora caminhariam sozinhas em vez de estourarem como balões que sobem alto, mas num belo dia desatam a rebentar? Quem pensou? Houve quem pensasse mas não foram os senhores eleitos pelo nosso povo. O mesmo povo que irrompeu nas ruas na Revolução Francesa e no 25 de Abril. O mesmo povo, traído pelos seus governantes, traído por si mesmo. E depois de uns anos de avanço logo começamos às arrecuas com o poder político vendido ou capturado pelo poder económico e  financeiro. E agora todos juntos não passamos de pequenos atores de um teatro de fantoches. Nós e os políticos que elegemos. E o povo desconhece mais uma vez o rosto de quem move os fios. E quem move os fios desconhece, ignora, despreza as marionetas das quais, usa, abusa e descarta sempre que os entende como dejetos do sistema. Seres que não fazem falta no momento.
Mas é deste povo, maltratado, traído, descartado, digerido e cuspido pelas minas e pelo sistema capitalista que nasceu e há-de nascer sempre o Germinal da revolta. E a revolta é antes de tudo um processo íntimo, uma semente que se instala em cada indivíduo. E porque na verdade, quer acreditem ou não, os grandes senhores de cada tempo, todos os povos, homens e  mulheres, têm os mesmos direitos, são feitos da mesma massa, possuem forças e debilidades, sensibilidade, faculdades, inteligência, intuição, sentido de justiça e imaginação. E por isso todas as marionetas descartadas se podem levantar, sair do palco, subir nas costas do sistema e, um a um, cortar os fios e deixar abandonados os senhores que os desprezaram.
Neste momento da história tenho pouca fé na capacidade de organização em massa e na resistência heróica de um povo de mineiros capaz de passar dois meses sem comer para fazer greve. Das duas uma, ou precisamos de voltar e este grau de injustiça generalizado (e não de apenas  uma parte da população) para nos revoltarmos ou a revolta vai ser muda e individual. A revolta que pode minar por baixo os alicerces do capitalismo pode ser tão somente um virar de costas. Não temos dinheiro, não consumimos. Felizmente já não somos analfabetos e existe uma quantidade suficiente de desempregados letrados e informados para voltarem costas ao sistema, se organizarem em pequenos grupos de troca e inter-ajuda, criarem sistemas de produção alternativos. Sobre as trocas ainda não há impostos, nem ninguém pode taxar a inter-ajuda. Solidariedade e imaginação. Penso que este é o germinal da revolução que se está a apresentar paulatinamente no palco da História.

Não acreditam? Ninguém acreditava no final do livro que os mineiros venceriam por fim!

domingo, 25 de agosto de 2013

No Tempo em que o Mamadou Nasceu


"Quando o Mamadou nasceu não havia nada, nem plantas. Só animais. Existiam todos os animais da selva. Pessoas não havia. Estavam escondidas nas barrigas das mães. Todas umas dentro das outras.
Quando ele nasceu não havia borboletas, só borboletas de brincar...
(- Quem é que brincava com elas?)
- O Mamadou.
(- Quem é que fez essas borboletas?)
- Foi o pai natal que deu. Nós as duas montamos as borboletas...
(- Mas nós não existiamos...)
- Pois não. Foi dentro das barrigas das mães que nós montamos as borboletas.
(- E como é que as borboletas saiam das barrigas das mães?)
- Por aqui [umbigo]. E depois fizeram muito cocó.
(- Quem?)
- Ele. 
(- Ele quem?)
- Este filho.
(- Como é que ele se chama?)
- Mamadou! Não sabes?... Mamadou Mendes da Silva.
(- E depois o que é que aconteceu?)
- Mataram os lobos todos. À noite.
(- Quem é que os matou?)
- Os maus!
(- Porquê?)
- Porque sim. Tu sabes. Tu és avó, tu sabes.As pessoas estavam todas a dormir. Foram os maus, à noite. Foi horrível, até eu chorei!
(- Porquê?)
- Porque mataram os lobos. Nesse dia eu chorei. Sim, sim.
(- E depois o que aconteceu?)
- Nada. Acabou-se a história."

por Júlia Espiridião (4 anos)





terça-feira, 30 de julho de 2013

A maravilhosa idade dos porquês

- Mãe, quando o pai pôs a semente, tu disseste, como é que me desenhaste?
- Como é que quê , filha?
- Como é que me desenhaste?
(Silêncio da mãe: o que é que eu respondo?...)
- Não fui eu que te desenhei filha, foste tu que te desenhaste...
- Como?
- Tinhas um lápis e um espelho e começas-te a desenhar, os olhos, a boca, o nariz...
- E como é que eu tinha um lápis na barriga?
- Já levavas dentro da sementinha.
- Ah...

Na verdade segue na sequência da conversa de há uns dias:
À mesa...
(...)
- Tu nessa altura ainda não existias, filha.
- Ah?...
- Não existias...
- Ah?
- Não existias. Agora estás aqui. Eu faço assim e toco-te. Tu estás aqui. Na altura eu fazia assim (esbracejo) e não te conseguia tocar. Porque tu não existias... Não tinhas nascido...
- Ah?...
- Não tinhas nascido.
(Silêncio pensativo)
- Como uma flor?
- Exactamente! Como uma flor!
- Como?
- Foi uma semente que o pai tinha e pôs na mãe... A mãe fez de terra e a semente nasceu dentro da barriga da mãe. E tu começaste a crescer, a crescer...
- Ah...

sábado, 27 de julho de 2013

Elogio a Marco


Acabada de assistir a uma entrevista com Alice Vieira em que ela crítica as novas alterações assépticas aos livros de Enid Blyton - onde palavras como "tareia" ou "cerveja" são substituídas por outras políticamente correctas - decidi-me finalmente a escrever sobre o "Marco" que muitos de nós viram na infância.... 
A memória que guardava da minha infância é que passava na televisão, uma vez por semana, ao Domingo, se a memória não me engana e que sofri durante longos meses até sentir a felicidade de o ver encontrar a mãe. E lembrava-me que tinha ficado "viciada", que detestava quando não podia ver. 
Passados agora quase 40 anos tive oportunidade de o ver, de seguida, em 5 DVD´s. Primeira reacção: pasmo! O Marco bebe uma pinguita de vinho para brindar, o Marco trabalha às escondidas para ajudar a família, a mãe deixa-o para ir trabalhar para outro continente... A minha filha colada, episódio atrás de episódio, e eu cada vez mais colada também, tentando perceber o quanto o Marco pode  ter sido determinante na formação do meu carácter. Desde muito pequena andava sempre com a palavra "justiça" na boca... 
E apaixonei-me agora por esta história, ao ponto de parar uma tarde inteira para ver os últimos episódios com a minha filha, chorando baba e ranho com as injustiças que lhe faziam, com o racismo de que era alvo, com a emoção de perceber a generosidade de algumas pessoas que vai encontrando, com a emoção de ver este menino que, no meio de tantas desventuras, encontra sempre tempo e espaço para ajudar quem precise mais do que ele. Um menino que grita, que chora, que ri, que pula de contente, que cai de cansaço, que cai de desespero, que tem pesadelos, que é acolhido e amado por estranhos, que é defendido por desconhecidos no seu percurso. Que é maltratado e que é bem tratado pelas mais diversas pessoas, pobres ou ricas, com ou sem instrução. Porque no "Marco" não há tendências nem preconceitos sobre o sítio onde vive o bem e o mal. O mundo não é a preto e branco. É real. E a construção de juízos de valor fica  a cargo da criança que vê. Ela identifica-se de imediato com o personagem: é uma criança à procura da mãe e, portanto, não é difícil cada criança se sentir na sua pele. E tudo o que fazem ao Marco fazem-no um pouco à criança que o vê, seja o bem ou seja o mal. E os maus são tão reais como os mais reais que todos nós conhecemos: são pessoas que gostam de se rir à custa dos outros, que não se conseguem pôr no lugar dos outros, que são egoístas, que fazem generalizações xenófobas, que maltratam os animais, que não se empatizam com o outro. São os maus reais, não têm cornos, nem barbatanas como nos filmes inutilmente violentos. Mas existem, coisa que não acontece em belíssimos desenhos animados que existem hoje, mas onde tudo é meigo, fofo, correcto, multi-racial e ecológico. E eu pergunto-me: que instrumentos mentais damos às nossas crianças para avaliarem com autonomia o mundo e os outros se não lhes apresentarmos de forma emotiva os problemas que inevitavelmente vão ver ou sentir? Que mal faz chorar de dor e emoção? Queremos por acaso criar máquinas politicamente correctas mas sem capacidade de reagir quando se depararem com o mal: identificar, perceber, relativizar, rejeitar sem "demonizar"... Acreditem, dentro do que de melhor vi para crianças em DVD nos últimos tempos está a Ponyo (uma verdadeira obra de arte de homenagem à tolerância e ao amor) e o Marco, pela sua força de fazer sentir emoções e fazer crescer eticamente uma criança. Que mais hei-de dizer? Foi um enorme prazer rever esta história de um menino, filho de um médico que se endivida para criar uma clínica para tratar os pobres, numa altura em que não havia assistência social e que, quando está prestes a encontrar a mãe, dá o dinheiro que tinha para a viagem, para salvar de uma pneumonia uma menina, que por ser de um bairro pobre, não tem médico que lá queira ir... Sinto que, com todo este elogio não honro verdadeiramente esta obra prima de homenagem às emoções e à generosidade mas é o melhor que consigo dizer. Ofereçam aos vossos filhos e às crianças que conhecem. Com 4 anos já ficam "colados" mas se virem mais tarde melhor.

sexta-feira, 15 de março de 2013

A crise, os velhos, as crianças e revolução

Tenho dito muitas vezes que estamos na iminência de viver uma revolução. Dêmos uns passos atrás para nos observarmos de longe: falamos muitas vezes de revolução agrícola, de revolução industrial e também falamos da revolução francesa, americana, russa e da dos cravos. Há revoluções que partem de movimentos populares, outras partem do exército, outras entram em movimento pela força das circunstâncias, pelo contexto político, económico, social, cultural, técnico e científico. Só são efetivas e verdadeiras quando se alastram aos indivíduos. Quando eles aderem à mudança. Se a resistência estiver latente ou oprimida então chamamos-lhe antes ditadura.
A revolução que acredito podermos estar a viver é uma revolução como a revolução industrial, demográfica ou científica. Acontece por força das circunstâncias. O fim de um ciclo do sistema capitalista está a gerar profundas alterações em vários países do mundo. Na Europa ela sente-se agora nos países do sul. Mas crises semelhantes têm ocorrido em países da América latina. Portanto, não tenhamos ilusões. Este não é um problema português. É um fenómeno global. Criamos uma sociedade baseada no supremo valor da produtividade, lucro, investimento, especulação, consumo. Um animal que corre atrás do próprio rabo num círculo vicioso que agora se transformou em espiral.
Dêmos uns passos atrás para nos observarmos de longe. Será a nossa forma de viver a melhor? Consumimos e desperdiçamos à custa de quê e de quem? Somos felizes assim? Mal os nossos filhos nascem começamos logo a consumir: somos capazes de fazer horas extra para comprar o melhor dos enxovais, em vez de começarmos a abrandar e nos dedicarmos ao namoro da ideia de ter um filho. Parte do tempo que gastamos a trabalhar para comprar coisas para os nosso filhos devíamos gastá-lo a brincar e a passear com eles. Usufruir da felicidade que é ver uma criança a crescer, cada pequeno passo, cada palavra, cada pergunta, cada gesto novo... Esta deveria ser a nossa prioridade. Com os nosso velhos fazemos a mesma coisa. Colocamo-los num lar ou deixamo-los a viver sozinhos. Porquê? Não é culpa nossa. As horas de trabalho necessárias ao pagamento de uma prestação de uma casa e de um carro obrigam-nos a ficar reféns de um trabalho a tempo inteiro que não nos deixa tempo livre. Nas famílias, cada vez mais pequenas e isoladas, não sobra ninguém com mais tempo que possa assumir os cuidados das crianças e dos idosos.
Agora, recentemente, com o aumento do desemprego, temos ouvido notícias de que há pais a retirar as crianças dos infantários, que há filhos a voltar para casa dos pais, que há pais idosos a serem retirados dos lares para irem para casa dos filhos. Fala-se quase sempre disto como de algo negativo, como se os pais não dessem mais atenção aos filhos do que aquela que eles têm nos infantários, como se os filhos (e os netos!) não pudessem dar aos idosos uma felicidade muito maior do que estar num lar. Todo esta transformação é dolorosa porque é sempre dolorosa a adaptação. Mas não significará um progresso maior do que aquele a que revolução industrial obrigou quando empurrou para a cidade milhões de famílias isoladas do que lhes era familiar, desprotegidas, a trabalhar 14 horas e a viver em condições de absoluta falta de higiene?
Não é uma solução bem inteligente as pessoas juntarem-se mais e inter-ajudarem-se? Que preço estamos nós a pagar pela falsa abundância baseada não na nossa riqueza real mas no dinheiro emprestado a juros? Não valerá mais a pena viver com menos e viver perto de quem amamos?
Este é apenas um dos pequenos detalhes desta transformação que se está a operar, destas pequenas adaptações saem os sobreviventes, os que resistem, os que recriam. O tempo livre do desemprego pode dar-nos tempo para criar soluções e novas formas de estarmos na nossa vida. O estado deixou de nos proteger e perdeu a sua função. Quem reina agora é um monstro chamado anarco-liberalismo. Não foi eleito, impôs-nos paulatinamente uma ditadura. Como abatê-lo? Eu acredito que somos nós, os liliputianos, que vamos fazer a revolução necessária. Adaptando-nos e contornado as dificuldades, podemos cortar as pernas ao gigante que vive do consumo que inevitavelmente teremos que deixar de lhe dar. Cortar as pernas a esta gigante que nos condena a uma vida de trabalho sem amor, nem arte, nem pensamento para no fim nos dar uma mísera reforma com a qual passearemos em excursões tristes a recordar tudo o que não vivemos durante toda a nossa vida. Todas as adaptações no sentido da união, solidariedade, redução do consumo, criação de auto emprego, trabalho artesanal, práticas agrícolas, exploração turística e cultural estão ao alcance de todos. Porque, como diria a Nina Simone, temos as nossas mãos e estamos vivos... Isto está a acontecer por todo o lado! E isto faz parte da revolução! Não precisamos apenas de demitir o Miguel Relvas nem sequer apenas o governo. Precisamos de uma alteração profunda, de uma mudança de paradigma económico, social e político. Uma parte desta mudança está em marcha, é inevitável, é uma adaptação inevitável. Outra parte terá que partir de uma renovação política. Que o novo governo se concentre em assegurar o que é essencial para as pessoas: não é o regresso aos mercados, não é a bolsa de valores, não é dar emprego a qualquer custo construindo auto-estradas e escolas gigantescas para alimentar os lobies do betão... A política do PS baseou-se na solução adotada para superar a crise dos anos 30. mas nós agora estamos em 2013 e o fomento do emprego fazia mais falta na educação, na saúde, no requalificação urbana sustentável (sem atropelar o património como anda a ser feito no Porto, visite-se o inqualificavelmente horroroso largo no quarteirão das Cardosas).
Precisamos de renovar a classe política colocando à frente do país toda a gente que ficou para trás por ser demasiado honesta. Precisamos de uma política de esquerda. A maior revolução está na mentalidade, ser capaz de superar o medo da esquerda. A esquerda terá de se unir e o povo terá de ser capaz de votar nela. Duas coisas bem difícieis. E isto será apenas o início de uma mudança que devemos querer se quisermos definir como prioridade das nossas vidas menos “coisas” e uma vida melhor. Com aquilo que é essencial para uma vida melhor. Têm-me dito que sou lírica, que o ser humano não muda assim de repente de mentalidade, que as pessoas estão demasiado apaixonadas e viciadas no consumo! Pois eu digo que bastou um dia numa viagem de comboio para Auschwitz para milhares de seres humanos alterarem as suas prioridades. De repente pessoas como nós definiram como prioridade a necessidade mais básica do ser humano: sobreviver. Não me digam que a mentalidade e a prioridades não se redefinem quando vemos os nossos filhos a passar fome, não me digam que não muda nada quando vemos os nosso filhos emigrar, não me digam que não muda nada quando depois de uma vida de trabalho ficamos sem casa porque de repente ficamos no desemprego! É inevitável mudar. E só não mudam aqueles a quem ainda não aconteceu nada e que são incapazes de se solidarizar com os outros. Tenhamos consciência do momento histórico que vivemos! Entremos ativamente nesta revolução. Vamos para a rua mas vamos também começar a discutir alternativas para as nossas vidas e para a nossa sociedade.

http://www.youtube.com/watch?v=mZVQmJVXDkk

sábado, 2 de março de 2013

Que se lixe a troika! Portugal é um país rico!


Eu vou falar daqui. A partir da minha enorme ignorância do funcionamento do sistema económico e financeiro mundial. E vou partir daqui: como pode um país tão rico ter chegado a esta enorme pobreza? Refém de uma dívida que nunca poderá pagar? Cujos governantes anseiam o dia em que possam aceder a mais empréstimos a juros mais baixos. Para nos continuarmos a endividar apenas de forma mais barata. Mais barata que a ajuda externa que temos tido. “Ajuda externa” que é o que se tem chamado a um empréstimos a juros tão elevados que têm rendido muito dinheiro a quem já tem muito dinheiro. E eu pergunto, aqui de baixo da minha ignorância: ajudo alguém que não tem dinheiro quando lhe empresto agora 50 € quando mais adiante ele me vai devolver 75 e sabendo de antemão que ele não o poderá pagar? Como pode esta absurda falta de lógica ter-se instalado no discurso de gente tão bem parecida? E eu pergunto: para que precisa um país como o nosso de ser roubado? Para que precisa um país como o nosso que lhe emprestem dinheiro? Aqui está sempre a nevar? Há tufões dia sim, dia não? É isto, por acaso, um deserto? Já não resta nenhum peixe nos mares? E o sol, que foi feito dele? Como pode este “jardim à beira-mar plantado” ter chegado ao ponto de precisar de dinheiro emprestado pago com um sofrimento tão brutal? Dinheiro emprestado que não é sequer para alimentar quem tem fome, que não é para pagar a saúde, que não é para educação, que não é para financiar a indústria, nem a pesca, nem a gricultura? Dinehiro emprestado que é para pagar dinheiro emprestado?! Serei completamente estúpida? Estarei a fazer uma grande confusão? Não temos nós tudo o que um povo precisa para viver com o necessário? Será preciso viver longe de quem se ama para sobreviver? Que espécie de catástrofe se abateu sobre nós? O que aconteceu para chegarmos até aqui? Sem agricultura, sem indústria e sem pesca? E porque motivo permitimos que nos fizessem isso? Acenaram-se com as casas novas penduradas no céu que não valiam metade do preço que se pagou... Acenaram-nos com a ideia de que éramos o que tínhamos, que éramos os nossos carros, as nossas roupas, os nosso objetos de nova tecnologia, sempre hoje comprados por um décimo do que amanhã custavam... Acenaram-nos com a ideia de que o que parecemos ser é aquilo que somos. E isso não é verdade. O que somos é apenas o que somos: o que pensamos, o que somos capazes de criar, o que somos capazes de transformar, a nossa capacidade de adaptação, aquilo que inventamos, o que temos de inesperado.
O que pensávamos nós? Que mudar de carro de 3 em 3 anos era um objetivo justo e legítimo de quem trabalha? Que comer o triplo do que devemos é compatível com uma distribuição racional dos recursos do planeta? Que ganhar dinheiro por ter golpe de vista e sem trabalho é legítimo quando outros para ganhar um milésimo têm de transpirar 40 horas por semana?
Comparamo-nos com o resto da Europa... E eu pergunto-me: o planeta chega para vivermos todos com o nível de vida dos alemães e dos suecos? Ou a palavra injustiça só tem significado quando a injustiça é sobre nós? E os povos africanos que até hoje pagam a dívida da nossa exploração?
Temos de parar e temos de questionar tudo. Temos de parar e definir o que é essencial: pão na mesa, tempo livre para nós, para os amigos, para a arte e para a beleza. Porque motivo a mecanização e o o consequente aumento de produção nunca reverteu a favor da humanidade? Porque criamos um sistema em que o aumento de produção enriquece os ricos e cria uma classe média, em que o poder político está subjugado ao poder económico, e que ciclicamente sofre crises porque é insustentável. E é insustentável porque quando tudo corre mal os malefícios não são imputados aos que antes beneficiaram mas sim àqueles que sempre ficaram na mesma para no fim ficarem pior.
Em suma. Temos sol, temos praia, temos terras férteis, uma extensa costa, conhecimento técnico e científico, saber fazer artesanal e industrial. Somos um povo honesto demasiado tolerante à corrupção. Porque somos uma gente de ética flácida. Que com tanto mar aprendeu a deixar-se levar pelas marés.
Está na hora de nos firmarmos. “Está na hora de o governo se ir embora”, “que se lixe a troika”. Sugiro que não paguemos. Comecemos do zero. Agarremos as nossas terras, recuperemos os conhecimentos, saibamos viver com menos, saibamos usar o nosso poder criativo, a nossa força e a nossa capacidade de trabalho. Aprendamos com o norte da Europa um pouco mais de organização. Criemos um país nosso, feito à nossa medida e daquilo que é importante. Saibamos ser e não parecer.
Que se crie um governo de esquerda, um socialismo tolerante a um liberalismo moderado. Com lugar para o mérito e para o direito à diferença. Com direito à preguiça e com direito ao trabalho. Um Portugal justo e solidário. Um governo de esquerda de AQUI E AGORA. Esqueça-se o Marx, o Trotsky, e o Mao Tsé Tung. Aqui e agora. Uma nova ideologia num novo tempo. Com uma única base: Liberdade, igualdade de oportunidades, fraternidade. Tudo o resto são ismos tristes da história, são interpretações demasiado humanas de grandes pensadores que, sem quererem, criaram verdadeiros monstros. Esqueçam as quezílias antigas. Que todos os homens de boa vontade se juntem num objetivo comum: a felicidade do povo português. Esquerda de Portugal, deixem-se de merdas, unam-se para o que é essencial. Povo português, deixem-se de merdas e desistam da alternância PS/PSD. O que temos a perder? O que nos pode meter mais medo do que separarem-nos dos nossos filhos, abandonarem-nos e expulsarem-nos do nosso país? o que nos pode meter mais medo do que saber que pessoas que trabalharam 40 anos têm reformas de 200 e porque o seu trabalho foi ilegal e no fim só tiveram direito ao desemprego?