quinta-feira, 29 de maio de 2008

Onde é que tu estavas quando se quis construir uma barragem no Côa?

Eu estava lá. Dedicando quase todo o meu tempo a tentar impedir um gigante. Como eramos muitos liliputianos, conseguimos. Como mudou o cenário político, conseguimos. Enquanto empurrávamos, de forma tão desajeitada, este monstro feito de finas teias de lobbies, interesses, meandros de escuridão, jogadas de betão, ouvíamos outros liliputianos dizer: Empurra, empurra, tu queres é um tacho... Não deixei de empurrar mas jurei a mim mesma que nunca tiraria dividendos na sequência dessa luta. E segui pela porta estreita. De forma dura e crua: tinha 22 anos, fiz os últimos anos do curso de forma minimalista, quatro cadeiras num ano, não tenho pais ricos, trabalhei para pagar as despesas e trabalhando fui dirigente associativa e membro até ao último momento de um grupo restrito de líricos que acreditavam que valia apena lutar contra a maré para fazer deste planeta um mundo mais habitável. A nossa bandeira dizia: “Não herdamos o planeta dos nossos pais, pedimo-lo emprestado aos nossos filhos”.
Tinha 22 anos, não tinha pais ricos, sabia que a seguir viria o trabalho mas não me preocupava que trabalho, com que ordenado. Tinha certeza que o mais importante era, como diz o poeta José Miguel Silva, chegar a casa com as mãos sujas e o coração limpo.
E comecei, pela porta estreita, tal como me ensinou o deus que abandonei (sou, como disse a minha professora preferida, uma “agnóstica judaico-cristã”). Pela porta estreita, pelo caminho montanhoso, recusei cunhas, recusei decotes. Em consequência, trabelhei até um ano atrás a recibos verdes. Vejo alguns colegas antigos muito bem colocados em cargos públicos, políticos, à frente de empresas, de instituições museológicas... Alguns com mérito, alguns com muito trabalho, alguns com tudo isto e uma ajuda de “boas relações”, “conhecimentos”, “frutos naturais do trabalho de voluntariado”. Outros descaradamente pelo cunha e pelo decote da blusa, pela porta bem larga, pelo portão da quinta, pela propriedade sem muros nem barreiras. Falam como gente honesta, aparecem com um sorriso nas fotografias, com ar de jovens empreendedores. Eu sou o fracasso, eles são o sucesso. Não me posso queixar, foi o caminho que escolhi. Mas posso pelo menos perguntar:

ONDE É QUE TU ESTAVAS QUANDO SE TENTOU CONSTRUIR UMA BARRAGEM NO CÔA?


Às vezes a porta é mesmo muito estreita, às vezes sufoco com este auto estrangulamento que me provoco “ser tolerante para com os outros, implacável contigo próprio”, vou-me tentando poupar seguindo a directiva mundial dos liliputianos megalómanos em tratamento psiquiátrico “ter força para continuar a lutar por aquilo que podemos mudar, ter capacidade para aceitar aquilo que não está ao nosso alcance mudar e discernimento para distinguir uma coisa da outra.

Às vezes penso que a única solução é partir. Os cientistas acreditam poder existir um local, aqui mesmo na nossa galáxia, a "lua azul", com muito oxigénio, florestas de quilómetros de altura e um ar tão denso que até as baleias conseguem voar. Alguém me arranja um bilhete para lá?

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Fugas de Alice Munro


Gostei especialmente do conto "Truques" não só porque é uma bela história de amor mas também pela "moral da história". Porque quando pensamos que algo na nossa vida pode ser programado percebemos que basta um centímetro ao lado, basta abrir uma porta um segundo antes ou depois, para toda a nossa vida ser diferente. Tal como na "Insustentável Leveza do Ser" a nossa vida é determinada por um rendilhado de acasos e o ponto de união de cada uma das linhas é o ponto exacto que determina todo o desenho da nossa tão incontrolável existência. Mas, ao contrário da "Insusentável Leveza do Ser" em que tudo se conjuga para um destino com sentido, aqui o desconcertante é o erro que se inicia nesse ponto e que se amplia tornando toda a existência um engano. É como num tapete de arraiolos em que só na conclusão se percebe que um erro inicial, imperceptível durante todo o processo de construção, comprometeu o resultado final.

quinta-feira, 8 de maio de 2008

Justiça na rua do Almada

Hi! Hi! Hi! Hi! Hi!
Não se deve desejar mal aos outros mas quando se vê um polícia de segurança pública sem barriga, sem bigode, sem perdigotos e sem arbitrariedades, fazer justiça...
Está um chico esperto, típico português com uma mão na buzina e outra nos tomates, na rua do Almada a insultar um velhinho que parou o carro para fazer uma carga numa rua com um sinal que informa “cargas e descargas até às onze horas”. Apesar de informado sobre a dita placa, continuava a fazer justiça pelas suas palavras sábias gritando “Eu é que sou o turista! É o país que temos! Ó não sei quantos” e outras coisas cujo sentido filosófico e dimensão poética se tornava difícil de alcançar. Braços musculados esticados no volante e mulher envergonhada ao lado...
E eis que chega o nosso herói... O balão rapidamente perde ar, murcha, tira os óculos de sol e com um olhar quase felino diz: “sabe o que é senhor agente...” mas não há hipótese: “Encoste ali à frente que vai ser autuado” “Está bem senhor agente...”
Eu cá defendo um polícia de segurança pública para cada português!

sexta-feira, 2 de maio de 2008

Mediocre ou mediana. Mediocre ou mediana. É o que me ocorre de tempos a tempos que sou. Nenhum fracasso em nada, nenhum sucesso em nada. Nunca pus os ovos todos no mesmo cesto, fartei-me foi de espalhar ovos por aí. Essa é a consequência de não se ser persistente em nada. Uma fraca fotógrafa, uma fraca escritista, uma fraca jardineira, uma fraca hortelã, uma fraca arqueóloga, uma fraca amiga, uma fraca mulher. Mas porque havia de ser melhor?
Hoje na aula de yoga o professor disse: Nesta posição o corpo tende a tremer, mas não liguem, é só o vosso corpo não são vocês. Tarde de mais porque eu já tinha cedido e baixado pensando que eu e ele éramos um só.
Mas eu sempre soube que não. Que aquele joelho que esfolei na viela a vir da escola não era meu. Que o meu corpo é um pacote dentro do qual me encontro presa. Fui crescendo assim, com o meu corpo a fugir de mim, comigo a fugir do meu corpo. E sempre a pensar “Porque é que eu sou eu e não tu?” Porque é que eu nasci aqui e não ali? Porque é que eu sou a Teresa e não a Xanda, a Tété, o Pieta, o Piriquito, a Guidinha das Malhas, a Rojona, o Zé Maluco, a Ana Maria, A Bela, o Paulinho, a Agostinha, o meu irmão Miguel, o meu irmão João, a minha prima Zeza ou outro qualquer dessas dezenas de primos?
O meu corpo ginga e eu ando lá dentro aos trambolhões. O meu corpo olha para mim e acha-me estranha. Sempre culpada e comprometida com qualquer coisa que ele fez. Um corpo estranho dentro de mim, uma estranha dentro do meu corpo.
Ultimamente comecei a maltratá-lo. Dou-lhe tabaco, mando-o pegar numa trincha e pintar uma casa inteira, obrigo-o a trabalhar dez horas num dia. Não lhe dou roupa nova.
E ele que só queria prazer… E eu que só queria esquecer-me dele para sempre.