terça-feira, 30 de julho de 2013

A maravilhosa idade dos porquês

- Mãe, quando o pai pôs a semente, tu disseste, como é que me desenhaste?
- Como é que quê , filha?
- Como é que me desenhaste?
(Silêncio da mãe: o que é que eu respondo?...)
- Não fui eu que te desenhei filha, foste tu que te desenhaste...
- Como?
- Tinhas um lápis e um espelho e começas-te a desenhar, os olhos, a boca, o nariz...
- E como é que eu tinha um lápis na barriga?
- Já levavas dentro da sementinha.
- Ah...

Na verdade segue na sequência da conversa de há uns dias:
À mesa...
(...)
- Tu nessa altura ainda não existias, filha.
- Ah?...
- Não existias...
- Ah?
- Não existias. Agora estás aqui. Eu faço assim e toco-te. Tu estás aqui. Na altura eu fazia assim (esbracejo) e não te conseguia tocar. Porque tu não existias... Não tinhas nascido...
- Ah?...
- Não tinhas nascido.
(Silêncio pensativo)
- Como uma flor?
- Exactamente! Como uma flor!
- Como?
- Foi uma semente que o pai tinha e pôs na mãe... A mãe fez de terra e a semente nasceu dentro da barriga da mãe. E tu começaste a crescer, a crescer...
- Ah...

sábado, 27 de julho de 2013

Elogio a Marco


Acabada de assistir a uma entrevista com Alice Vieira em que ela crítica as novas alterações assépticas aos livros de Enid Blyton - onde palavras como "tareia" ou "cerveja" são substituídas por outras políticamente correctas - decidi-me finalmente a escrever sobre o "Marco" que muitos de nós viram na infância.... 
A memória que guardava da minha infância é que passava na televisão, uma vez por semana, ao Domingo, se a memória não me engana e que sofri durante longos meses até sentir a felicidade de o ver encontrar a mãe. E lembrava-me que tinha ficado "viciada", que detestava quando não podia ver. 
Passados agora quase 40 anos tive oportunidade de o ver, de seguida, em 5 DVD´s. Primeira reacção: pasmo! O Marco bebe uma pinguita de vinho para brindar, o Marco trabalha às escondidas para ajudar a família, a mãe deixa-o para ir trabalhar para outro continente... A minha filha colada, episódio atrás de episódio, e eu cada vez mais colada também, tentando perceber o quanto o Marco pode  ter sido determinante na formação do meu carácter. Desde muito pequena andava sempre com a palavra "justiça" na boca... 
E apaixonei-me agora por esta história, ao ponto de parar uma tarde inteira para ver os últimos episódios com a minha filha, chorando baba e ranho com as injustiças que lhe faziam, com o racismo de que era alvo, com a emoção de perceber a generosidade de algumas pessoas que vai encontrando, com a emoção de ver este menino que, no meio de tantas desventuras, encontra sempre tempo e espaço para ajudar quem precise mais do que ele. Um menino que grita, que chora, que ri, que pula de contente, que cai de cansaço, que cai de desespero, que tem pesadelos, que é acolhido e amado por estranhos, que é defendido por desconhecidos no seu percurso. Que é maltratado e que é bem tratado pelas mais diversas pessoas, pobres ou ricas, com ou sem instrução. Porque no "Marco" não há tendências nem preconceitos sobre o sítio onde vive o bem e o mal. O mundo não é a preto e branco. É real. E a construção de juízos de valor fica  a cargo da criança que vê. Ela identifica-se de imediato com o personagem: é uma criança à procura da mãe e, portanto, não é difícil cada criança se sentir na sua pele. E tudo o que fazem ao Marco fazem-no um pouco à criança que o vê, seja o bem ou seja o mal. E os maus são tão reais como os mais reais que todos nós conhecemos: são pessoas que gostam de se rir à custa dos outros, que não se conseguem pôr no lugar dos outros, que são egoístas, que fazem generalizações xenófobas, que maltratam os animais, que não se empatizam com o outro. São os maus reais, não têm cornos, nem barbatanas como nos filmes inutilmente violentos. Mas existem, coisa que não acontece em belíssimos desenhos animados que existem hoje, mas onde tudo é meigo, fofo, correcto, multi-racial e ecológico. E eu pergunto-me: que instrumentos mentais damos às nossas crianças para avaliarem com autonomia o mundo e os outros se não lhes apresentarmos de forma emotiva os problemas que inevitavelmente vão ver ou sentir? Que mal faz chorar de dor e emoção? Queremos por acaso criar máquinas politicamente correctas mas sem capacidade de reagir quando se depararem com o mal: identificar, perceber, relativizar, rejeitar sem "demonizar"... Acreditem, dentro do que de melhor vi para crianças em DVD nos últimos tempos está a Ponyo (uma verdadeira obra de arte de homenagem à tolerância e ao amor) e o Marco, pela sua força de fazer sentir emoções e fazer crescer eticamente uma criança. Que mais hei-de dizer? Foi um enorme prazer rever esta história de um menino, filho de um médico que se endivida para criar uma clínica para tratar os pobres, numa altura em que não havia assistência social e que, quando está prestes a encontrar a mãe, dá o dinheiro que tinha para a viagem, para salvar de uma pneumonia uma menina, que por ser de um bairro pobre, não tem médico que lá queira ir... Sinto que, com todo este elogio não honro verdadeiramente esta obra prima de homenagem às emoções e à generosidade mas é o melhor que consigo dizer. Ofereçam aos vossos filhos e às crianças que conhecem. Com 4 anos já ficam "colados" mas se virem mais tarde melhor.