quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Germinal


Na leitura de Germinal de Émile Zola há mil ideias que me ocorrem. Difícil é organizá-las num texto que faça justiça a esta obra que transcende o tempo em que foi criada. Foi criada nos alvores do capitalismo, filho primogénito do liberalismo que, por sua vez, constituiu um reação ao absolutismo que, por sua vez constituiu uma reação ao feudalismo. Assim se foi desenvolvendo a história nesta espiral de tese, antítese, síntese cujo processo Marx tão bem descreveu esperando, contudo, um fim da história com todos os seres humanos em igualdade. Não sabemos se Marx se enganou porque o fim da História não está à vista mas acredito que estamos num momento de antítese cuja esperada síntese não conseguimos vislumbrar.
Várias questões me perturbam com a leitura deste livro. Retrata a luta desumana de centenas ou milhares de mineiros que, no final do século XIX, algures em França, tentavam resistir às medidas que os administradores das companhias mineiras tentavam tomar para diminuir o prejuízo provocado por um momento de crise no sector. É uma lei do capitalismo: quando tudo corre bem os lucros revertem a favor dos investidores e os trabalhadores conquistam, a custo, parcos direitos, tirados a ferros, à custa de greves, atentados, mortes… Assim que os ventos mudam, os prejuízos são imputados aos trabalhadores e subtraídos diretamente aos seus salários e direitos anteriormente conquistados que passam, nestas alturas de crise, a designar-se “privilégios” ou “regalias”. Qualquer semelhança com os dias de hoje não é pura ficção!
No passado tal como hoje, os mineiros desconhecem quem são os donos das minas. É uma gente cujos rostos não conhecem, são os acionistas que vivem luxuosamente sobre os lucros das minas e que, em momentos de crise, não podem encomendar, tanto quanto antes, os últimos modelos de Paris para as suas filhas. Parecem desconhecer que a miséria e a fome dos mineiros está diretamente relacionada com o luxo em que vivem. Eles apenas investiram ou herdaram ações… Que mal pode haver nisso? E como são pessoas de religião e de fé incutem nos seus filhos os valores de caridade e de misericórdia, enternecendo-se com a sua capacidade de despender algum do seu tempo a ajudar os pobres. Qualquer semelhança com os dias de hoje não é pura ficção! Qual é o magnata que não se enternece a ajudar uns meninos africanos a ser vacinados, a contribuir para a luta contra a fome, a ajudar instituições de caridade?... Estão a tentar lavar-se dos seus pecados ou nem sequer percebem que há uma relação causa-efeito entre o dinheiro que lhes sobra e o dinheiro que falta aos esfomeados?
Este retrato pintado pelo Germinal é o retrato de um povo que, cem anos antes, tinha acabado com o absolutismo e rebentado com uma revolução que gritava “Liberdade, igualdade, fraternidade!” O fruto dessa revolução não foi a democracia foi o liberalismo: uma classe oriunda do povo ansiava, não por direitos iguais para todos, mas em privilégios iguais para si. E assim floresce uma nova burguesia, alicerçada sobre o valor do mérito. Contestava os direitos adquiridos à nascença e reclamava que fosse possível ascender pelo trabalho e pelo mérito. No fundo reclamava apenas meios diferentes para conseguir os mesmos fins: o estatuto da defunta nobreza, o domínio de uns homens pelos outros. Depressa cuspiram no prato onde comeram. Depressa se tornaram tão insensíveis como a Antonieta. Porque reclamam os mineiros?! Afinal a Companhia não lhes dá casa e carvão de graça, acaso não tinham direito a médico e pensão de invalidez? Se o dinheiro não lhes chegava certamente é porque o gastavam na tasca… Nunca lhes ocorre que, com apenas um pequeno sentido de justiça, uma pequena distribuição dos prejuízos diminuindo ao seu lucro, talvez até os mineiros já se contentassem…
Da mesma forma hoje o capitalismo trabalha no seu próprio suicídio, quando não quer ver que depende do consumo e do emprego para se alimentar… As injustiças são cada vez mais intoleráveis. Os direitos conquistados durante décadas são diariamente roubados. E sobre a miséria, deitam a culpa sobre as pessoas. Que querem elas? Não percebem que temos de pagar uma dívida que contraímos [sem atender às reais necessidades do país]? Que quisemos aproveitar os financiamentos para grandes obras públicas [a maioria das quais perfeitamente supérfluas, mal geridas, mal planeadas e nas quais também tínhamos de pagar uma percentagem do investimento e que é, essa sim, uma das razões do nosso endividamento]?
Quem os mandou viver acima das suas possibilidades senão o capitalismo que lhes enfiava cartas no correio e lhes enchia os telemóveis de mensagens aliciantes para se endividarem para comprarem a casa, o carro e a mobília, tudo de uma assentada? Tudo novo! Nada de restaurar, de conservar, de reabilitar? Nós queremos tudo novo!
Quem pensou que investir na educação, na prevenção, na saúde, no planeamento do território, na preservação das nossas pequenas indústrias, na reconversão da nossa agricultura de subsistência numa agricultura inteligente, biológica, de pequenas propriedades mas de qualidade, poderiam ser alternativas de desenvolvimento mais sustentáveis, à medida do nosso país, que agora caminhariam sozinhas em vez de estourarem como balões que sobem alto, mas num belo dia desatam a rebentar? Quem pensou? Houve quem pensasse mas não foram os senhores eleitos pelo nosso povo. O mesmo povo que irrompeu nas ruas na Revolução Francesa e no 25 de Abril. O mesmo povo, traído pelos seus governantes, traído por si mesmo. E depois de uns anos de avanço logo começamos às arrecuas com o poder político vendido ou capturado pelo poder económico e  financeiro. E agora todos juntos não passamos de pequenos atores de um teatro de fantoches. Nós e os políticos que elegemos. E o povo desconhece mais uma vez o rosto de quem move os fios. E quem move os fios desconhece, ignora, despreza as marionetas das quais, usa, abusa e descarta sempre que os entende como dejetos do sistema. Seres que não fazem falta no momento.
Mas é deste povo, maltratado, traído, descartado, digerido e cuspido pelas minas e pelo sistema capitalista que nasceu e há-de nascer sempre o Germinal da revolta. E a revolta é antes de tudo um processo íntimo, uma semente que se instala em cada indivíduo. E porque na verdade, quer acreditem ou não, os grandes senhores de cada tempo, todos os povos, homens e  mulheres, têm os mesmos direitos, são feitos da mesma massa, possuem forças e debilidades, sensibilidade, faculdades, inteligência, intuição, sentido de justiça e imaginação. E por isso todas as marionetas descartadas se podem levantar, sair do palco, subir nas costas do sistema e, um a um, cortar os fios e deixar abandonados os senhores que os desprezaram.
Neste momento da história tenho pouca fé na capacidade de organização em massa e na resistência heróica de um povo de mineiros capaz de passar dois meses sem comer para fazer greve. Das duas uma, ou precisamos de voltar e este grau de injustiça generalizado (e não de apenas  uma parte da população) para nos revoltarmos ou a revolta vai ser muda e individual. A revolta que pode minar por baixo os alicerces do capitalismo pode ser tão somente um virar de costas. Não temos dinheiro, não consumimos. Felizmente já não somos analfabetos e existe uma quantidade suficiente de desempregados letrados e informados para voltarem costas ao sistema, se organizarem em pequenos grupos de troca e inter-ajuda, criarem sistemas de produção alternativos. Sobre as trocas ainda não há impostos, nem ninguém pode taxar a inter-ajuda. Solidariedade e imaginação. Penso que este é o germinal da revolução que se está a apresentar paulatinamente no palco da História.

Não acreditam? Ninguém acreditava no final do livro que os mineiros venceriam por fim!

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