sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Ode a uma padeira com alma de princesa

Adoro os teus primeiros toques desajeitados e alegres nas raquetes...
as tuas gargalhadas ao entrar no mar com o teu pai, que falam sobre o mais puro prazer de entrar na água.
Adoro a tua capacidade de te empenharas na resolução dos problemas dos adultos, sobre como construir um galinheiro ou vedar a horta
Adoro os teus ensaios de arqueóloga quando procuras, numa parede antiga, uma janela entaipada
Adoro o que pensas sobre eutanasiar esse insecto moribundo que tu classificas de "em sofrimento". Adoro quereres ser tu a virá-lo para cima, a esse pobre infeliz destinado a morrer de patas para o ar. Adoro que, ao vê-lo sofrer, digas que talvez o melhor seja calcá-lo para acabar com o seu sofrimento e servir de alimento para os filhos das formigas.
Adoro que respondas, de forma prática, quando te coloco a questão:
- E se ele viesse a conseguir sobreviver?
- Olha, temos pena.
Mas adoro igualmente que não tenhas coragem para o matar, como se tivesses já consciência do valor supremo da vida
Adoro os teus pequenos dedos a percorrer as linhas do meu rosto, como se me tivesses a desenhar. E gostaria que, se me pudesses redesenhar, me retirasses o ar triste e zangado que marca o meu rosto de adulta 
Adoro quando, com um livro pousado nas pernas, levantas a cabeça e dizes com um ar sonhador "Quem me dera saber ler!..."
Adoro a tua ideia de fazer pulseiras para ajudar a ganhar dinheiro para a família
Adoro todas as tuas perguntas: sobre as tampas de saneamento, sobre as bóias do rio, sobre como apareceu o primeiro homem e a primeira cadeira, sobre as estrelas, o infinito e o fim do tempo...
Adoro a tua alegria e as tuas gargalhadas
Adoro para ti ser divertimento suficiente seguir as minhas pegadas na areia
E adoro a tua língua de fora quando enches um balde de areia, como se não houvesse mais mundo para além desse momento
E adoro quando pegas numa borracha para apagar uma linha "mal feita"
Adoro quando dizes "adoro" e a quantidade de vezes que dizes "adoro"
Adoro quando vês em tudo um bebe para embalar, até um montinho de algas que recolhes nos teus braços junto ao mar
E adoro quando admiras o facto de uma pedrinha ser tão pequenina ou de uma concha ser tão grande
Adoro como para ti tudo é tão fácil, simples e prático
Adoro a tua complacência, a tua paz de espírito, a tua imunidade à mesquinhez, o teu gosto em rir e fazer rir
Os segredos do mundo inteiro estão guardados na tua paz. És tu quem tem todas as respostas que eu procuro. Basta que eu te ouça e te observe.
Se eu acreditasse em Deus pedia-lhe que te conservasse sempre essa força enorme, essa capacidade de seres feliz na adversidade
Mas, como não acredito, resta-me encarregar-me de assegurar a paz necessária para que cresças assim como és: curiosa, observadora, feliz, pensadora q.b., sabendo separar o trigo do joio, sabendo questionar, avaliar e escolher como tu tão bem sabes agora. E sabendo "afastar-te do mal" como tu bem sabes agora.
A tua pequena consciência brota do teu cérebro com seis anos como não brota de grande parte dos humanos adultos deste planeta
És muito grande. Tudo no teu corpo é ainda tão pequeno ainda mas a tua alma é já enorme.
Sabes ao certo o tempo que se deve despender na resolução de problemas impossíveis
Distingues os meninos bem comportados dos mal comportados mas brincas também com estes. Com um sorriso, encolhendo os ombros dizes que o J. é muito tolo...
Toda a gente parece gostar de ti mas parece ser-te indiferente se alguém não gosta. Se alguma atitude nos teus colegas não te agrada, viras costas no momento e já me aconselhaste a fazer o mesmo
Por mim, nomeava-te desde já "Alta Conselheira para a Construção da Paz no Mundo"
Porque te sinto capaz de resolver todos os conflitos mundiais.
Será este o nosso destino? Nascer sábios e aprendermos (ou não) a ser estúpidos?
Adoro a forma como pegas em todos os bichos sem nojo: nas galinhas, nos licranços e nos escaravelhos... Essa familiaridade com as outras formas de vida espanta-me, maravilha-me e apaixona-me.
Se eu pudesse renascer queria ser como tu. Feita "à tua imagem e semelhança"
E pergunto-me, perante tudo isto, se serás capaz de perdoar todos os defeitos da tua mãe. E de não te deixar contagiar pela minha zanga universal...

quarta-feira, 22 de julho de 2015

Centro Histórico do Porto – Preservar para quê?



Há dias perguntava a uns turistas franceses o que tinham achado do Porto. De entre todos os elogios e considerações ficou-me esta observação: “Impressiona porque se vê que a guerra não passou por aqui”. Eram pessoas oriundas de um lugar que havia sido completamente arrasado durante a 2ª Guerra Mundial. Arrasado e reconstruido. E as pessoas lamentavam as perdas a todos os níveis mas, neste caso, patrimoniais e históricas.

É certo que as cidades se transformam ao longo da história mas também é certo que a classificação do Porto como Património Cultural da Humanidade pela Unesco, em 1996, se deve ao grau de preservação da sua identidade arquitetónica e urbanística e à sua autenticidade... E, convenhamos, a classificação do património faz-se com o intuito de preservar.

No momento da sua classificação o Porto era uma cidade preservada. Preservada mas decadente. Uma cidade de casas abandonadas, uma cidade com um enorme potencial, que urgia proteger e requalificar, mau-grado todas as reabilitações levadas a cabo desde os anos 70.

Ainda hoje isto é verdade mas estamos em tempos de mudança e a mudança neste momento faz-se a grande velocidade. À semelhança do que parece ter acontecido no século XIX, em que grande parte dos edifícios foram renovados, hoje o Porto está em obras.

O Porto está em obras por várias razões. A sua classificação impulsionou o investimento na reabilitação; a legislação sobre arrendamento alterou-se fazendo com seja, novamente, rentável reabilitar; as pessoas querem voltar a viver na cidade. Sobretudo, a cidade encheu-se de milhares de turistas, vindos de todos os cantos do mundo para conhecer esta cidade tão bonita, tão singular, tão preservada, tão cheia de História e de histórias, tão autêntica, tão cheia de pormenores nas suas fachadas, tão cheias de becos, ruelas e escadas disfuncionais mas belas...

E nós, portugueses e portueneses, que não somos “morcões”, queremos aproveitar esta oportunidade e beneficiar das receitas que estes milhares de turistas trazem à cidade e ao país... E para o fazer abrimos restaurantes, museus, lojas de artesanato, serviços de aluguer de bicicletas, autocarros turísticos, agências de viagens, hotéis e alojamentos e tudo o que nos lembre, a nós, gente empreendedora que, abandonada pela crise, se desunha para ganhar o pão.

Está tudo certo. Mas não está. Porque nesta febre de reabilitação corremos o risco de desvirtuar o carácter da cidade e destruir aquilo que nos fez merecer a classificação e que nos traz os milhares de estrangeiros todos os dias.

Paulatinamente, edifício a edifício, substituímos portas maciças e nas portas as ferragens e os batentes, substituímos caixilharias de janelas, cheias de detalhe de marceneiros de outros tempos por caixilharias mais pobres, por vezes simplificadas, por vezes fracas imitações, por vezes vidros lisos... E, por vezes, não. Por vezes, há pessoas que percebem a importância de manter o original. E optam por soluções menos invasivas, pela preservação de soluções estéticas, por conservar e restaurar os materiais originais ou substituir por réplicas fiéis. Mas, por vezes poucas...

Por vezes substituem-se os azulejos antigos por azulejos novos, quando era possível restaurar e manter os antigos, quando as entidades de tutela “mandam” que se mantenha a fachada. Quase sempre destroem-se os interiores: as escadas helicoidais em madeira iluminadas pelas características clarabóias, os soalhos, os tetos em estuque, os rodapés altos, as ombreiras das portas, as portas interiores encimadas por bandeiras, as janelas interiores que da pouca luz fazem muita. Soluções iluminadas de quem só tinha duas estreitas fachadas e uma clarabóia e com isso conseguia uma casa cheia de luz. Soluções de arquitetos de outros tempos, arquitetos com outro tempo. Um tempo em que tudo se fazia mais devagar, um tempo em que se construia para viver. Um tempo diferente do nosso, em que se destrói para sobreviver...

Ou talvez não. Talvez se destrua por ganancia, por ignorância, por desconhecer que restaurar pode, para além de tudo, ser mais barato do que reconstruir (é urgente desfazer o mito). Por desconhecer ou não querer saber que esse turista que procura o autêntico, o detalhe, a história e as história, um dia poderá não voltar mais. Poderá não voltar por desilusão, por já não ver na cidade o património classificado. Ou porque os habituais destinos turísticos – hoje postos de lado pelas guerras e pela ameaça terrorista – voltaram a estar em paz. Ou porque o petróleo se esgotou e se acabaram as viagens “low cost”.

Em todos os casos o que estamos a fazer é um erro crasso. É um erro na perspetiva da rentabilização económica por via do turismo. É um erro porque nos arriscamos a perder a classificação. É um erro porque reabilitamos para turismo, optando por soluções que condicionam o uso dos espaços para esse fim, invalidando uma fácil reconversão para fins habitacionais (vislumbro, nos seus futuros corredores desertos, um triciclo de criança fazendo um circuito solitário e aterrorizante, qual Shining...). É um erro porque sim, porque recebemos uma cidade do passado que temos obrigação de transportar para o futuro em melhores condições. Não é nosso o património. Por isso é considerado património, por isso é da humanidade, por isso é mundial. E nós não somos a humanidade, pois a nossa passagem é breve. Nós não temos uma perspetiva “mundial” quando apenas cuidados de interesses individuais e a curto prazo. O património deixará de o ser se o descaracterizarmos. Por isso, acima de tudo, não temos legitimidade para o destruir. É uma questão de princípio.

Preservar o Centro Histórico do Porto para quê? Para preservar a história, a autenticidade e a beleza da nossa cidade. Para reabilitarmos uma cidade que se quer habitada e que se quer visitada. Porque as pessoas que aqui vivem têm direito a não emigrar, a criar o seu emprego, a beneficiar da conjuntura turística favorável. Preservar esta cidade é desenvolvê-la de forma sustentada, para que no futuro, independentemente das conjunturas, ela possa ser uma cidade com vida, mas vida que preserve a alma.

Ela pode e deve continuar a ser um grande destino turístico, o turismo é bem vindo numa cidade que carece de sustento, o sustento outrora dado pela indústria e pelo comércio.

Ela pode e deve ser um lugar habitado, habitado pelas velhas gentes do Porto e pelas novas. Dessa mistura nascerá, sem dúvida, uma cidade mais rica e diversa.

O que ela não precisa é de elefantes brancos, hotéis gigantescos cujas reabilitações destroem completamente os seus interiores e descaracterizam fachadas, ultrapassando qualquer norma ou diretriz das entidades que tutelam o património. São modelos de edifícios cujas dimensão e exigências funcionais não se compatibilizam com a preservação de antigos edifícios habitacionais. Façam-se, portanto, fora do Centro Histórico do Porto. Ou não se façam de todo! Ou, excecionalmente, façam-se dentro de edifícios cuja função se perdeu e que não tenham outra solução adequada, como antigos armazéns, edifícios industriais (e mesmo assim há que ver com calma, caso a caso. Ponderar...).

Enquanto as entidades de tutela se permitem permitir este desastre, alguns particulares honram a cidade e património, optando pelo restauro. Outros sucumbem ao lobby da construção civil e das soluções aparentemente fáceis.

Falta debater amplamente este tema e falta apoiar quem quer reabilitar, como outrora se fez em Guimarães, cidade com um trabalho exemplar, a este nível. Falta ter coragem de dizer “não” aos grandes grupos económicos que apenas visam o lucro imediato. Infelizmente não é a eles – com dinheiro farto mas estreiteza de vistas – que compete defender o património e a cidade. Defender o Porto compete às entidades que tutelam o património e a construção, que deviam ser mais normativas e restritivas e menos tolerantes com os atropelos constantes às suas próprias diretrizes.

E compete-nos a nós, cidadãos que amamos esta cidade e que a queremos habitada, limpa, reabilitada mas autêntica. Que queremos turismo mas de turistas que voltem e tornem a voltar.


terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Julia's dream



Hoje tive um sonho muito xiro... Sonhei com o César, o Tiago e aquela menina (Isabel). O Tiago tinha-me posto uma coisa assim na cabeça com um coração aqui (na testa). Quando eu precisava, carregava no botão (coração) e todos os amigos vinham ajudar-me.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Questões sobre o infinito e boas razões para não tentar explicar o processo de hominização a uma criança de 5 anos


Mãe, quantas línguas há no mundo?
-Não sei filha, pr'aí cem, não sei...
- Cem? A sério?... Cem mais cem?
- Duzentos.
- Duzentos e vinte?
- Não. Cem mais cem são duzentos, mais 20 são duzentos e vinte.
- Até quando se pode contar?
- Até sempre. Podes começar agora a contar e só parar quando morreres. Nunca acaba. É infinito.
- O que mais é que é infinito?
- Ah... Muitas coisas. Neste caso são os números. Dorme filha, que já é tarde...
- O mundo é infinito?
- O Planeta terra não. Um dia vai morrer porque depende do sol. E o sol, como todas as estrelas vai morrer.
- Pois é, as estrelas morrem.
- Quando o sol morrer o planeta terra também morre. Mas isso é daqui a muito, muito tempo, muitos milhões de anos.
- A sério? A terra vai morrer?
- Sim. Mas é daqui a muito tempo. Nós já estaremos mortas há milhões de anos.
- Eu não queria morrer...
- Não te preocupes com isso, faltam muitos, muitos anos. O resto do mundo existe para sempre, com estrelas sempre a morrer e outras a nascer.
- Mãe, és tu a dizer hoje. Diz! (Oração da noite inventada pela Júlia e que ajuda a dormir melhor)
- Meu amor, minha querida, eu gosto muito de ti. Eu nunca te vou deixar sozinha. Dorme bem meu amor. (beijo na testa)

(…)
- No início não havia vida na terra. E já havia pessoas. Como?
- Não. Não havia pessoas.
- Oh! (bate na cabeça). Pois é.

(…)
(Na quinta de Sto. Inácio)
- Estás a ver filha, os macacos...? olha como são parecidos connosco. Olha as mãos, filha, olha as mãos...
- Vamos embora.
(mais adiante)
- Mãe, há algum sítio no mundo onde neste momento os macacos se estejam a transformar em pessoas?
- Não, não, não. Os macacos não se transformam em pessoas. Há muitos milhões de anos é que havia um seres parecidos com os macacos que depois se transformaram - mas ao longo de muitos milhares de anos - em pessoas e em macacos. Por isso nós e os macacos somos primos.

(…)
(Passado cerca de um mês)
- Mãe, tu ainda chegaste a ser uma espécie de macaco?
- Não, nunca. Já nasci pessoa. Isso foi há muitos milhares de anos. Nem eu, nem a avó Luzia sequer tínhamos nascido.
- E o pai?

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

5 anos: torrente de perguntas




Júlia. Cinco anos. Sentada no sofá. Olhar posto lá fora.


"- Mãe... Como apareceu a primeira pessoa?"
Longa resposta da mãe: que não foi de um dia para o outro, que o planeta terra quando nasceu não tinha vida... o primeiro mamífero... uma longa transformação... os nossos antepassados braqueadores... a semelhança com os nossos primos chimpanzés... a evolução das mãos, a criação de objetos, a descoberta do fogo, a caça e a linguagem, as cabanas e andar de terra em terra, a a perseguição das manadas, as alterações climatéricas, a actividade recolectora, a observação do crescimento das plantas e a invenção da agricultura, fomos deixando de andar atrás dos animais...
Ufa, como é difícil explicar isto a uma criança de 5 anos!
"- E... como apareceram as lareiras, as cadeiras, os brinquedos, os sofás, os carros...?"
Vou respondendo a tudo até saciar a curiosidade da menina. Deita-se no sofá, encosta a cabeça para adormecer.
"-Mãe, continua a contar mais coisas."
Este é o maior prazer da maternidade. Ver um ser humano a crescer.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Sara, tu foste feita para este país mas este país não foi feito para ti

Sara, tu foste feita para este país mas este país não foi feito para ti.
Trazes as rochas da tua terra contigo desde criança e desde criança te debruças, observas, interrogas. Será mesmo verdade que existe uma grade ouro no fundo do poço do castelo? Será mesmo verdade que dentro do branco quartzo existe ouro? Dentro do quartzo que, pequenina, tentavas carregar para casa, para saber, para descobrir... E que o teu pai - grande pai - já não se lembra mas te ajudou a transportar com o amor à tua curiosidade que crescia contigo.
PAIXÃO, Sara, é a palavra que usas e é a palavra que te define. Agora és crescida e dobras uma folha de papel para nos explicar como Valongo se elevou acima do nível do mar. Já não acreditas em grades de ouro mas guardas o encanto do conhecimento. Agora olhas para as pedras que recolheste e etiquetaste e sabes explicar a idade delas, a sua formação e composição.
E a força de mulher é a mesma que outrora usaste, em menina, para quebrar o quartzo à procura do ouro.
PAIXÃO é a palavra que usas e paixão é a palavra que te define. Corres por montes e vales da tua terra e continuas a parar para observar e recolher, como outrora. Chegas a casa e etiquetas. Levas crianças contigo à procura de fósseis e acontece de elas encontrarem trilobites completas que tu adoravas ter mas que entendes pertencerem à menina que a encontrou. A ti não te pagam para levares crianças às montanhas, para as ensinar a olhar o mundo de longe e de perto. A amar, conhecer e questionar.
PAIXÃO é a palvra que usas e paixão é a palavra que te define. Os meninos da tua terra deixam pedras que os teus pais encontram junto ao portão. O teu trabalho nada tem a ver com a tua paixão. Os teus pais sabem o significado dessas pedras à porta de casa. Pedras vulgares, pedras sem interesse mas nas quais está escrita a palavra "porquê", que tu lhes ensinaste.
Sara, ouço o lamento dos teus pais e de todos os pais deste país que sofrem mais do que os filhos porque toda a vida trabalharam para que os filhos pudessem estudar aquilo que os fascinava. Os teus pais foram enganados, Sara, porque este país deitou fora os lugares que existiam para pessoas como tu. E substituiu-os por cadeirões de reis imbecis, incapazes de algum dia se debruçarem sobre uma pedra ou uma criança. O que vamos fazer a este país onde a nossa paixão não tem lugar. Pergunto-me quantas Saras existem no país mais triste? Pessoas ávidas de conhecimento, cheias de curiosidade e amor, capazes de tirar o dia de folga para saltitar por entre arbustos molhados para nos mostrar as casas redondas que desde pequena conhece e explora, que voluntariamente foi limpando amiúde para que as ervas não a encobrissem.... Quem não percebe que são estas as pessoas que deviam estar sentados nos cadeirões deste país... A deixar que a terra dos sonhos fosse conduzida pelo conhecimento, pelo amor, pelo esforço e pelo trabalho, pela persistência e pela tenacidade...? Sara, em nome do nosso país, peço-te desculpa, envergonhada, por ele não te ver, não te reconhecer, não te recolher, não te amar, não te aproveitar. E gostaria que nunca abandonasses essa paixão que te move pois tenho a certeza que a tua, a minha e a de todas as Saras deste país, um dia triunfarão. Emergirão como Valongo neste mar de mediocridade. E os fosseis sobre as quais se abaterão, esses não serão dignos de estudo.

Foi um enorme prazer conhecer-te!

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Germinal


Na leitura de Germinal de Émile Zola há mil ideias que me ocorrem. Difícil é organizá-las num texto que faça justiça a esta obra que transcende o tempo em que foi criada. Foi criada nos alvores do capitalismo, filho primogénito do liberalismo que, por sua vez, constituiu um reação ao absolutismo que, por sua vez constituiu uma reação ao feudalismo. Assim se foi desenvolvendo a história nesta espiral de tese, antítese, síntese cujo processo Marx tão bem descreveu esperando, contudo, um fim da história com todos os seres humanos em igualdade. Não sabemos se Marx se enganou porque o fim da História não está à vista mas acredito que estamos num momento de antítese cuja esperada síntese não conseguimos vislumbrar.
Várias questões me perturbam com a leitura deste livro. Retrata a luta desumana de centenas ou milhares de mineiros que, no final do século XIX, algures em França, tentavam resistir às medidas que os administradores das companhias mineiras tentavam tomar para diminuir o prejuízo provocado por um momento de crise no sector. É uma lei do capitalismo: quando tudo corre bem os lucros revertem a favor dos investidores e os trabalhadores conquistam, a custo, parcos direitos, tirados a ferros, à custa de greves, atentados, mortes… Assim que os ventos mudam, os prejuízos são imputados aos trabalhadores e subtraídos diretamente aos seus salários e direitos anteriormente conquistados que passam, nestas alturas de crise, a designar-se “privilégios” ou “regalias”. Qualquer semelhança com os dias de hoje não é pura ficção!
No passado tal como hoje, os mineiros desconhecem quem são os donos das minas. É uma gente cujos rostos não conhecem, são os acionistas que vivem luxuosamente sobre os lucros das minas e que, em momentos de crise, não podem encomendar, tanto quanto antes, os últimos modelos de Paris para as suas filhas. Parecem desconhecer que a miséria e a fome dos mineiros está diretamente relacionada com o luxo em que vivem. Eles apenas investiram ou herdaram ações… Que mal pode haver nisso? E como são pessoas de religião e de fé incutem nos seus filhos os valores de caridade e de misericórdia, enternecendo-se com a sua capacidade de despender algum do seu tempo a ajudar os pobres. Qualquer semelhança com os dias de hoje não é pura ficção! Qual é o magnata que não se enternece a ajudar uns meninos africanos a ser vacinados, a contribuir para a luta contra a fome, a ajudar instituições de caridade?... Estão a tentar lavar-se dos seus pecados ou nem sequer percebem que há uma relação causa-efeito entre o dinheiro que lhes sobra e o dinheiro que falta aos esfomeados?
Este retrato pintado pelo Germinal é o retrato de um povo que, cem anos antes, tinha acabado com o absolutismo e rebentado com uma revolução que gritava “Liberdade, igualdade, fraternidade!” O fruto dessa revolução não foi a democracia foi o liberalismo: uma classe oriunda do povo ansiava, não por direitos iguais para todos, mas em privilégios iguais para si. E assim floresce uma nova burguesia, alicerçada sobre o valor do mérito. Contestava os direitos adquiridos à nascença e reclamava que fosse possível ascender pelo trabalho e pelo mérito. No fundo reclamava apenas meios diferentes para conseguir os mesmos fins: o estatuto da defunta nobreza, o domínio de uns homens pelos outros. Depressa cuspiram no prato onde comeram. Depressa se tornaram tão insensíveis como a Antonieta. Porque reclamam os mineiros?! Afinal a Companhia não lhes dá casa e carvão de graça, acaso não tinham direito a médico e pensão de invalidez? Se o dinheiro não lhes chegava certamente é porque o gastavam na tasca… Nunca lhes ocorre que, com apenas um pequeno sentido de justiça, uma pequena distribuição dos prejuízos diminuindo ao seu lucro, talvez até os mineiros já se contentassem…
Da mesma forma hoje o capitalismo trabalha no seu próprio suicídio, quando não quer ver que depende do consumo e do emprego para se alimentar… As injustiças são cada vez mais intoleráveis. Os direitos conquistados durante décadas são diariamente roubados. E sobre a miséria, deitam a culpa sobre as pessoas. Que querem elas? Não percebem que temos de pagar uma dívida que contraímos [sem atender às reais necessidades do país]? Que quisemos aproveitar os financiamentos para grandes obras públicas [a maioria das quais perfeitamente supérfluas, mal geridas, mal planeadas e nas quais também tínhamos de pagar uma percentagem do investimento e que é, essa sim, uma das razões do nosso endividamento]?
Quem os mandou viver acima das suas possibilidades senão o capitalismo que lhes enfiava cartas no correio e lhes enchia os telemóveis de mensagens aliciantes para se endividarem para comprarem a casa, o carro e a mobília, tudo de uma assentada? Tudo novo! Nada de restaurar, de conservar, de reabilitar? Nós queremos tudo novo!
Quem pensou que investir na educação, na prevenção, na saúde, no planeamento do território, na preservação das nossas pequenas indústrias, na reconversão da nossa agricultura de subsistência numa agricultura inteligente, biológica, de pequenas propriedades mas de qualidade, poderiam ser alternativas de desenvolvimento mais sustentáveis, à medida do nosso país, que agora caminhariam sozinhas em vez de estourarem como balões que sobem alto, mas num belo dia desatam a rebentar? Quem pensou? Houve quem pensasse mas não foram os senhores eleitos pelo nosso povo. O mesmo povo que irrompeu nas ruas na Revolução Francesa e no 25 de Abril. O mesmo povo, traído pelos seus governantes, traído por si mesmo. E depois de uns anos de avanço logo começamos às arrecuas com o poder político vendido ou capturado pelo poder económico e  financeiro. E agora todos juntos não passamos de pequenos atores de um teatro de fantoches. Nós e os políticos que elegemos. E o povo desconhece mais uma vez o rosto de quem move os fios. E quem move os fios desconhece, ignora, despreza as marionetas das quais, usa, abusa e descarta sempre que os entende como dejetos do sistema. Seres que não fazem falta no momento.
Mas é deste povo, maltratado, traído, descartado, digerido e cuspido pelas minas e pelo sistema capitalista que nasceu e há-de nascer sempre o Germinal da revolta. E a revolta é antes de tudo um processo íntimo, uma semente que se instala em cada indivíduo. E porque na verdade, quer acreditem ou não, os grandes senhores de cada tempo, todos os povos, homens e  mulheres, têm os mesmos direitos, são feitos da mesma massa, possuem forças e debilidades, sensibilidade, faculdades, inteligência, intuição, sentido de justiça e imaginação. E por isso todas as marionetas descartadas se podem levantar, sair do palco, subir nas costas do sistema e, um a um, cortar os fios e deixar abandonados os senhores que os desprezaram.
Neste momento da história tenho pouca fé na capacidade de organização em massa e na resistência heróica de um povo de mineiros capaz de passar dois meses sem comer para fazer greve. Das duas uma, ou precisamos de voltar e este grau de injustiça generalizado (e não de apenas  uma parte da população) para nos revoltarmos ou a revolta vai ser muda e individual. A revolta que pode minar por baixo os alicerces do capitalismo pode ser tão somente um virar de costas. Não temos dinheiro, não consumimos. Felizmente já não somos analfabetos e existe uma quantidade suficiente de desempregados letrados e informados para voltarem costas ao sistema, se organizarem em pequenos grupos de troca e inter-ajuda, criarem sistemas de produção alternativos. Sobre as trocas ainda não há impostos, nem ninguém pode taxar a inter-ajuda. Solidariedade e imaginação. Penso que este é o germinal da revolução que se está a apresentar paulatinamente no palco da História.

Não acreditam? Ninguém acreditava no final do livro que os mineiros venceriam por fim!